sábado, 25 de fevereiro de 2012

SOBRE A COISIFICAÇÃO.




Há um problema sério de vagas para veículos em Brasília, seja em que parte for. Isso é inquestionável. Nosso projetista, Lúcio Costa, deve se contorcer em seu túmulo, ao perceber o caos que é o estacionamento na Capital Federal hoje. Não creio que tenha sido isso que ele idealizou há um pouco mais de 52 anos. Seja na Esplanada dos Ministérios, nos Setores de Diversões ou nos Comércios Locais o problema é sempre o mesmo: não há vagas.
É fato que o transporte público não ajuda muito. Quem depende dele sonha com o carro próprio e economiza para adquiri-lo; e é bem verdade que as políticas para aquisição de automóveis fizeram crescer consideravelmente o número de veículos nas ruas. As vagas, então, tornaram-se insuficientes.
Assim, o problema persiste, pois o número de carros é imenso e a malha asfáltica, ao contrário, não. Também pudera. Nossa cidade foi planejada para um número inicial de 600.000 mil habitantes e, hoje, ultrapassamos a marca de 900.000 mil motorizados nas ruas de Brasília. Em conseqüência disso, portanto, o número de vagas nos estacionamentos públicos é bastante deficitário.
Mas, deixando dados estatísticos de lado e humanizando mais esta história, quero dizer com tudo isso que a vida é muito mais importante que uma vaga no estacionamento.
Isso não é surpresa para você? Você acha que as pessoas sabem disso?
Bem, elas até sabem, mas, no dia a dia, acabam se esquecendo e tornam-se como os próprios carros: seres insensíveis, que não têm emoções ou sentimentos.
Minha mãe já dizia que quando uma pessoa entra num carro deixa de ser gente e vira o próprio carro. É a Coisificação. A maior prova disso é que quando você se aborrece com alguém no trânsito, se esquece que se trata de uma pessoa ao volante do outro carro – “adversário” ao seu, e passa a enxergar o outro como um veículo apenas. Então, você xinga, arremete o carro contra o dele, ultrapassa perigosamente e sai achando que ganhou numa briga.
Diante disso, podemos dizer que nós, seres humanos, de fato, somos completamente sugestionáveis.
Em se tratando de vagas, o princípio da Coisificação, aplica-se igualmente. Quem nunca passou raiva por esperar horrores até uma vaga aparecer e, na hora de manobrar, um engraçadinho entrar na frente e pegar o lugar? Dá vontade de subir em cima do carro do outro e pular até a lataria ficar toda amassada. Mas geralmente a gente bate boca mesmo, faz sinais com as mãos e, é claro que perde a paz facilmente.
Que vergonha! No auge da busca pela qualidade de vida, das mais altas tecnologias de comunicação, da exaltação do politicamente correto, agimos dessa maneira patética. Somos mesmo sugestionáveis. As situações nos sugestionam e nós caímos como patinhos em suas armadilhas.
A vida, então, perde o seu valor, e uma vaga no estacionamento ganha dimensões gigantescas. Há aqueles que brigam por uma vaga; aqueles que não saem dela, para não correrem o risco de perdê-la; aqueles que param em fila dupla, com preguiça de procurar uma disponível. Em todas essas situações, a vida é jogada à escanteio. Lá se vai embora a qualidade de vida.
Soube uma vez de uma pessoa que deixava de almoçar com a família durante toda a semana, porque era apegada demais a sua vaga; a sua vaga era de estimação. Sei também de pessoas que são capazes de estacionar em fila dupla, mesmo quando há vagas – só que mais distantes, porque estão com preguiça de andar um pouco mais até o seu destino.
Todos esses exemplos apenas demonstram como a vida perde o seu valor diante dessas situações aparentemente tão banais. Passamos a considerar o outro como coisa, coisa menos importante, é claro e, nos esquecemos que somos todos semelhantes e carentes das mesmas necessidades.
É óbvio que existe um problema de tráfego, mas a Coisificação não é o caminho para a sua solução. Seres humanos são sensíveis, conscientes, racionais, capazes de compreender que têm necessidades. Todos precisamos estacionar. Precisamos nos locomover. Precisamos aprender a viver em paz uns com os outros. E precisamos também aprender a viver. Uma vaga, sem dúvida, não é mais que um almoço em família, do que uma caminhada maior, para não atrapalhar a saída de outros motoristas, do que a paz que se tem quando se dá preferência a alguém.
Deixemos de ser tão sugestionáveis, portanto, e passemos a valorizar a vida, pela beleza e importância que ela naturalmente tem. Deixemos de considerar o outro menos importante, a ponto de coisifica-lo, a ponto de visualizar somente o carro e não a pessoa que o dirige.

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