ATENÇÃO: Esse post foi alterado, para retirar ofensa dirigida ao Clube do Bulldogue Francês de Brasília, em retratação. A autora retira a expressão "imbecis" do seu texto, por haver se arrependido de tê-la utilizado, pois essa característica não representa as pessoas a quem se refere no post. Com isso, espera-se que o desfecho da história seja resolvido de maneira respeitosa.
Recentemente, meu esposo e eu recebemos das mãos de um amigo que está de
viagem para o exterior o seu querido cãozinho. Nosso amigo está de mudança para
o Canadá e nos deixou o Duque para cuidar, um cachorro dócil e muito amável.
Como já temos duas cadelas em casa, sabíamos que não podíamos ficar com ele; o
espaço seria pequeno. O coração ficou partido, porque a vontade era de adotá-lo,
mas não tinha outro jeito. Começamos, então, a pensar em quem poderia ficar com
o cachorrinho. (Só não pensamos em como essa história nos renderia muita dor de
cabeça e uma bela lição de moral ao final).
Temos uma conhecida da nossa rua que adora cães. Ela vigia os carros no
estacionamento público e mora próxima a nossa casa. A Márcia é uma pessoa muito
bem quista pela vizinhança e se dá bem com todos. Além de cuidar dos nossos
carros, ela tratou de ir logo fazendo amizade com todo mundo. Achamos que ela
ia ficar contente com o presente. Daríamos o Duque para ela.
Trouxemos o cãozinho para ela e ela, é claro, adorou, se encantou por ele.
Ficou um pouco preocupada, inicialmente, é verdade, mas logo se apegou ao
Duque. A Márcia nunca havia criado um cachorro da raça dele, precisava conhecer
as suas peculiaridades. Mas, mesmo diante da apreensão dela, achamos que
fizemos a coisa certa. Ela nos contou que meses antes haviam furtado a
cachorrinha dela e ela queria muito outro companheiro. O Duque veio a calhar!
Passadas poucas horas que havíamos deixado o Duque com a Márcia, alguns transeuntes
começaram a achar estranho aquela “moradora de rua” acompanhada de um buldogue
francês. Eu não sei se é porque a Márcia é pobre e negra ou se porque o
buldogue é uma raça cara, ou as duas coisas, mas começaram a desconfiar que a
Márcia havia “encontrado” o cachorro pela rua e resolvera ficar com ele. O
julgamento contra ela foi duro, sem direito a ampla defesa e contraditório:
além de confundirem-na com uma moradora de rua, puseram-se a questionar a sua
índole.
A Márcia é uma mulher simples. Talvez nem ela mesma tenha percebido o
olhar de condenação das pessoas que iam passando. Pararam e lhe ofereceram
dinheiro pelo cachorro, mas ela se recusou; já estava apegada ao Duque.
Fizeram-lhe muitas perguntas, tiraram foto do cãozinho e divulgaram as fotos do
“encontrado” nas redes sociais. De um presente o cachorro passou a um objeto de
delito, e assim foram crescendo as inúmeras especulações sobre o que realmente
havia acontecido com o cão e o que ele estaria fazendo com aquela mulher na rua.
Até que meu esposo e eu tomássemos conta do tamanho da repercussão que o
caso estava ganhando, a história (mal contada) e as suas mil interpretações já
estavam circulando pelos grupos de whatsapp e facebook. Ouvimos e lemos muitas
mentiras. Tudo isso nos indignou e magoou demais.
Quando decidimos doar o Duque para a Márcia, o fizemos com cautela. Nos
certificamos de que ela iria cuidar bem dele e que teria condições. Jamais
teríamos largado o cãozinho na rua, sem ter como sobreviver. Não faríamos isso,
em consideração ao cachorrinho, mas também em consideração ao nosso amigo que
nos presenteou o Duque. Nós temos as nossas buldogues, temos coração. Porém, muitas
pessoas julgaram mal a capacidade de a Márcia oferecer um lar ao cachorro, e
nos julgaram também por tê-la escolhido para isso.
No dia seguinte, nossa paz virou um inferno. Ligaram nos nossos números,
enviaram mensagens pelo whatsapp e facebook, nos importunando e questionando a
decisão de doar o cachorro para a Márcia. O amigável grupo de pessoas que
compõem o Clube de Bulldogues tornou-se nosso carrasco cruel. Nos execraram.
Não quiseram nos ouvir. Nossas explicações não eram o bastante. E deram início
à caça à Márcia e ao Duque.
Não sei que tipo de trabalhador tem disponível o dia todo para buscar em
torno de uma região imprecisa da cidade informações sobre onde uma senhora
negra, pobre, que vigia carros e o seu cão poderiam estar. Mas certamente
algumas pessoas do grupo de buldogues possuem uma jornada de trabalho bastante
flexível, pois empenharam várias horas do dia para “resgatar” o Duque das mãos
da moradora de rua. Gente ocupadíssima, do tipo que busca sempre mais o que
fazer.
As buscas foram frustradas. Não encontraram a Márcia, apesar do grande
esforço. Mas isso não seria problema. Infernizando a vida dos envolvidos, isto
é, meu esposo, eu e nosso amigo, o grupo iria obter alguma informação do
paradeiro da moradora de rua. Poderiam também chamar a polícia, a mídia e os
grupos de resgate animal. Nada os impediria.
O amigo que nos deu o Duque, recebeu várias ligações durante todo o dia,
insistindo para que ele pedisse o cachorro de volta. Queriam destinar o cão a
um lar mais digno, em que as pessoas pudessem cuidar “melhor” dele. Acabaram
com o sossego dele e o nosso. Estavam decididos a tirar o cachorro da mão da
Márcia.
Mas não cedemos. Essa briga ia além de uma simples história de um
cachorro e de uma vigia de carros. Estávamos diante de um caso escancarado de
preconceito e discriminação. Na verdade, ainda estamos diante de um caso em que
pessoas de uma classe social mais avantajada consideram indigna uma mulher
pobre de possuir um cão cuja raça costumeiramente é criada por ricos. Estamos
falando de um grupo extremado, semelhante ao dos fundamentalistas dos quais
ouvimos todos os dias notícias escandalosas no jornal. Afinal, qual é o valor
que essas pessoas dão a um ser humano?
No caso dos “resgatadores” do Duque, eles sequer pensaram em ajudar a
Márcia a cuidar do cão. Pensaram, sim, em tirar o cachorro dela, pensaram em
dar ao animal um lar “digno”. Mas não pensaram que talvez, nessa história toda,
quem mais poderia estar precisando de melhores condições de vida é a própria
Márcia. A cegueira idealista desse grupo em prol de buldogues não permitiu que
vissem que a vida da Márcia, seus sentimentos, seu valor como pessoa prescinde
a do buldogue.
Preocuparam-se se o Duque estaria morando em um barraco. Supuseram que a
Márcia morava em um, mas isso não passou de pura especulação. A Márcia mora com
seu filho e sua nora; ela não mora na rua, não habita em um barraco. Mas, mesmo
que fosse verdade, ela não poderia ter um buldogue só porque mora em um
barraco? O que é? Essa raça não pode morar em barracos? Humanos podem morar em
barracos?
Hipócritas, isso sim! Um grupo que se importa com a aparência,
se importa com o ter, em detrimento do ser. Invertem os valores da sociedade e
se acham donos da verdade, acham que estão acima dela. Pessoas como essas, que
acreditam que o buldogue confere um “status” social a uma categoria selecionada
de criadores, e que não admitem que alguém fora dessa elite possa cuidar (e
muito bem) de um cãozinho desses também.
Continuam nos assediando, mas não vamos retroceder. Continuaremos a
apoiar a Márcia e dando o suporte necessário para que ela cuide do animal. O
cachorro agora pertence a ela. Dona Márcia, mulher, negra, vigia de carros, mãe
de quatro filhos, moradora de Taguatinga possui um buldogue francês, sim!